Antes de decidirmos seguir o caminho de um ensinamento espiritual, de qualquer cultura ou credo que venha, é necessário investigar nossa motivação para fazermos isso. A principal razão para nos tornarmos interessados em seguir um ensinamento não é porque não temos mais nada para fazer, ou porque precisamos nos manter ocupados, mas porque queremos em nossas vidas algo diferente do que vemos ao nosso redor.
Quando descobrimos o modo pelo qual vivem as pessoas “normais” — que não acham qualquer coisa importante em sua existência — e quando vemos que as atividades com as quais elas se tornaram acostumadas a preencher suas vidas não resolvem o problema do sofrimento que a nossa existência no ciclo do samsara nos traz, nós realizamos que temos de fazer algo diferente de nossa vida cotidiana. A maioria das pessoas não tenta entender estas coisas, e o que está além do seu entendimento não existe para eles. O que nós estamos tentando descobrir como praticantes espirituais, o que estamos tentando fazer, não é de interesse para elas. Não acreditam em qualquer coisa que não possa ser vista a olho nu. Devemos evitar a cegueira desse extremo, mas nossa busca espiritual também não deve ser um tipo de fantasia espiritual, um modo de evitar a realidade cotidiana.
A fim de praticarmos, antes de tudo é importante entendermos a morte e o renascimento, pois é através da conscientização sobre o ciclo de sofrimento que nós nos aproximamos do ensinamentos pela primeira vez. Através da investigação, podemos realizar que a nossa existência humana, nosso precioso nascimento humano, nos dá uma grande oportunidade, já que, através do nosso contato com os ensinamentos, podemos aprender como usar nossa inteligência para examinarmos nossos pensamentos e para observarmos como eles dão origem ao nosso apego, e podemos descobrir como levar o nosso apego e o conseqüente ciclo do sofrimento a um fim.
Incidentalmente, os ensinamentos espirituais não estão limitados à dimensão humana; até mesmo os animais podem praticar e atingir a realização. De fato, há histórias de mestres que foram capazes de se comunicar com animais e que transmitiram ensinamentos a eles. Por exemplo, há uma história sobre um mestre do início do século XX que costumava se comunicar com ietis, bodes e pombos. Um dia, um pombo foi à tenda onde este mestre estava dando um ensinamento. O mestre interrompeu o ensinamento e foi para fora, sentou-se em frente do pombo e se comunicou com ele sem palavras. O pássaro estava muito fraco e não podia se sentar na postura correta, então o mestre colocou um pouco de arroz em uma tigela e colocou o pássaro em um monte no arroz para que ele pudesse assumir a posição de meditação. Depois de receber ensinamentos na postura de meditação correta por alguns momentos, o pombo morreu e atingiu a liberação.
Humano ou animal, a fim de levar o ciclo do samsara a um fim, devemos descobrir a fonte do sofrimento. Esta fonte é a mente pensadora que dá origem às paixões e ao apego. O único modo de superar os venenos das cinco paixões e de suas manifestações é trazer a mente sob controle. Isto pode ser feito através da prática de ensinamentos que nos exortam a nos observarmos a fim de compreender a mente apegada e, através da prática, a superá-la. Deste modo, os ensinamentos nos guiam para descobrirmos a natureza subjacente da mente e a integrar sua condição verdadeira com a vida diária.
Mas muitas pessoas, críticas ao Dzogchen, questionam porque precisamos praticar se, de acordo com o Dzogchen, o estado búddhico é de fato o nosso estado natural. Se a nossa natureza verdadeira já é o estado búddhico, para quê cultivar a iluminação? Não podemos evitar estas críticas já que, de acordo com o Dzogchen, o estado búddhico é de fato o nosso estado natural. Não precisamos criá-lo, mas apenas descobri-lo através de nossa meditação. Mas se simplesmente concordarmos com nossas críticas, isto significaria que não há necessidade de praticar. Estas são coisas importantes para se pensar. Devemos responder que, apesar de o estado natural da mente ser primordialmente puro, há dois modos de ser puro. As máculas ou obscurecimentos não estão na natureza da mente (tib. semnyi / sem nyid), mas na mente que se move (tib. sem / sems), então eles podem ser purificados. É como na história de uma velha mendiga que toda noite dormia sobre uma almofada de ouro: ele era rica, mas já que não apreciava o valor do ouro, pensava que era pobre. Do mesmo modo, a pureza primordial de nossa mente não é de qualquer utilidade para nós se não estivermos conscientes dela e se não a integrarmos com a nossa mente que se move. Se realizarmos nossa pureza inata mas apenas de tempos em tempos nos integrarmos com ela, não estaremos totalmente realizados. Estar em integração total, todo o tempo, é a realização final. Mas muitas pessoas preferem pensar e falar sobre a integração ao invés de realizá-la.
Muitas vezes os praticantes de Dzogchen dizem, “Você não pode pensar ou falar sobre o Dzogchen porque ele é inefável”. Mas não é algo como: a experiência do Dzogchen está além dos pensamentos e palavras, mas nós praticantes não estamos além das dúvidas e perguntas, e nós precisamos resolvê-las. Não podemos simplesmente dizer, “Eu sou um praticante de Dzogchen, eu não quero ter dúvidas”. Dizer isto não é suficiente para se livrar delas, então é importante pensar sobre estes assuntos, caso contrário permaneceremos no estado dúvida e não atingiremos o estado puro. Por exemplo, se no Dzogchen dizemos que a nossa mente natural é espontaneamente perfeita, estamos querendo dizer que já temos a qualidade da realização em nós mesmos e que não é algo que devamos obter a partir de fora. Mas apesar de isso ser uma qualidade que é inata, temos de desenvolvê-la. A analogia tradicional é o modo pelo qual a qualidade da manteiga já existe no leite: para obter a manteiga, temos de bater o leite.